sábado, 15 de agosto de 2009

Pornopopéia



Ok. Confesso que quando comecei a ler esse livro pensei: "_Nossa, esse cara não cresceu?" Não estava acostumada com o estilo do Reinaldo Moraes. Esse autor foi aclamado pelo seu primeiro romance, Tanto Faz, na década de 80 ao que me parece.
A história do livro começa quando um diretor underground precisa criar um roteiro para um vídeo institucional. Sobre, adivinha? Embutidos de frango... Imagina a vontade do cara... Pra ajudar, o protagonista, Zeca, tem uma quedinha por coisas ilícitas - leia-se drogas, muitas drogas - e sexo. Não com sua esposa, logicamente. Entre um "tirinho" e outro, Zeca vive uma verdadeira epopéia.
Se você conseguir ler o primeiro capítulo e se acostumar com a montoeira de palavrões e termos como "imeio" - que confesso, me incomodaram um pouco - acaba gamando. Isso mesmo. Porque o Reinaldo, acusado por muitos de ser um autor que não cresceu, escreve com maestria e muita inteligência, colocando no texto umas sacadas nada menos que geniais. E o autor também não subestima a inteligência de seus leitores, colocando no texto referências explícitas e implícitas a Rimbauld, Hitchcock, Jimmy Hendrix, Doors, outras línguas, religião, cinema e por aí vai.
Ok, não te convencí? Vou então postar um trechinho do capítulo 6, quando Zeca, o protagonista, seu amigo Ingo e a jovem Sossô vão a um templo de Bhagadhagadhoga. Isso mesmo, você não leu errado. Espia:

"O jardim tinha o formato dum retângulo imperfeito recoberto por uma pequena hiléia de plantas altas e arbustos baixos, cortada por umas trilhas estreitas que se cruzavam em trama labiríntica. No centro do retângulo havia um círculo de grama baixa salpicada de tufos de flores variadas. Fomos desembocar nesse círculo central seguindo os passos do Ingo, que se movia com segurança pelo labirinto. Proust haveria de saber o nome de cada uma daquelas flores e plantas. Caio Fernando de Abreu também. Eu só conhecia o cipreste, que sempre associei a enterros e telas surrealistas. Uma das vantagens do cinema sobre a literatura é essa, a de desobrigar o autor de nomear as flores nos cenários. Por mim podiam ser armênias silvestres, jambronas do campo, rabos-de-babuíno-da-Tanzânia, lambrequinhas-da-serra e o cu-florido-a-quatro. Em todo caso, eram lindas, e suas cores me deixavam rastros cromáticos nas pupilas lisergizadas a cada chicote do olhar.
Cacete, pensei, bem que o Ingo tinha avisado: puta ácido, meu. Percorrendo mais um pouco o labirinto ajardinado fomos dar noutra clareira com quatro ícones de cimento dispostos em cruz. De acordo com o nosso personal bodhisattva, as quatro figuras demarcavam os quatro cantos místicos do universo pra onde os fiéis devem dirigir orações específicas ao longo do dia. Um dos ícones, o maior, que parecia presidir o cenário, representava uma bailarina de peitos nus e quatro braços dando a impressão de movimento. O dedão e o indicador de uma das mãos superiores se fechavam numa rosquinha endereçada aos mortais, enquanto a outra mão espetava o dedo médio para o céu, num fuck-you cósmico. Uma das mãos de baixo apontava com o indicador para a terra. A outra mão inferior armava uma espécie de saudação surfista, dedão e dedinho esticados num hang loose.
O Ingo foi explicando que aquela ou aquele - ambos os sexos numa só entidade - era Shiva Parvati, o manda-chuva da cosmogonia védica que zela pelos grandes ciclos de criação e destruição do universo material, sendo que, na versão baghadhagadhoga, Shiva é encarado como uma das manifestações do touro místico, o grande Zebuh Bhagadhagadhoga, de cujo badah-lingam sempre alerta dimana a energia que anima todas as formas de vida do planeta.
Os braços de cima da divindade, explicou Ingo, agiam no plano espiritual, bem acima da rota dos aviões de carreira. Os debaixo atuavam no mundo terreno, tangível, cuspível e cagável. Aquele dedo apontando pra terra, por exemplo, nos lembrava que, mais cedo ou mais tarde, seria alí a derradeira morada de todos nós, cineastas marginais, lavadeiras gostosas, girls despiroquetes, trombadinhas performáticos, citaristas de música indiana, esposas iracundas, síndicos escrotos, diretores de marketing endógeno, traficantes sacanas e suas putinhas portáteis, e tutti quanti. Agradecí o aviso e perguntei:
"E qualé a dos peitinhos da figura, Ingão? O que é que eles significam?"
Sossô riu do tiozinho lubricão. Mas o Ingo rebateu no ato, sério:
"O peito direito dá o leite do bem, o esquerdo o do mal. Os dois juntos são o alimento fundamental da consciência humana."
"Prefiro cerveja e cachaça", tasquei, boçal mas sincero.
O Ingo ria de tudo, complacente. E a Sossô ria junto com ele, por simbiose. Fazer uma mulher rir é fundamental. Mas tem que ter cuidado: se ela ficar rindo demais, o tempo todo, é sinal de que você virou um palhaço. E palhaço não dá tesão em mulher nenhuma. Palhaço só dá medo em criança. E era isso, afinal, que o Ingo estava virando para a Sossô: um clown - o clone do clown do Marsicano. Bom pra mim, no caso.
Seguimos, então, por outras trilhas, numa das quais topamos com uma fonte de cimento formada por uma bandeja de cimento no topo de uma coluna de metro e meio de altura. Em cima da bandeja se assentava em flor de lótus um pequeno Buda sorridente a verter água pelo umbigo. O cano com a água só podia estar entrando pelo rabo do Buda, vindo de dentro da coluna, o que submetia o gordinho careca a um clister permanente. Pelo sorriso dele, isso não parecia incomodar muito. A água vertida pelo umbigo do Buda transbordava da bandeja, escorria pela coluna e se infiltrava num grande ralo circular em torno da base. O Budinha lá em cima parecia levitar sobre um lago suspenso formado por seu próprio mijo incolor. Olhar praquilo me fezrebentar numa gargalhada patológica. No meu relógio subjetivo, durou dez minutos a gargalhada. Ou quinze. O Ingo, solidário, também soltou seu riso socadinho. Sossô riu por último, mas riu melhor e mais gostoso. Quando pude me controlar, mandei com brio:
"Se esse Buda mija pelo umbigo, nem me atrevo a perguntar por onde ele caga!"

Por essas e outras, muitas vezes me peguei rindo alto, rindo sozinha no ônibus - sim, eu leio no ônibus - ao ler essa bagunça originalíssima que é o Pornopopéia. Só que esse é um livro perigoso de se ler no ônibus e em outros locais públicos, pois honra o título, tem muitas passagens pra lá de picantes.

Quem quiser ler, Pornopopéia foi editado pela Editora Objetiva e está disponível nas principais livrarias. Tem 475 páginas e o preço médio é entre 40 e 50 reais.

Meu último argumento e algo que me fez simpatizar com o Reinaldo Moraes, é o fato de que a pedido do autor, o livro não segue as normas do novo acordo ortográfico. Eu, particularmente, adorei. Até 2012, trema na linguiça! ;)

Um comentário:

  1. Olha só...alguém que gostou desse livro! Não costumo a postar em blogs, mas uma leitora de Pornopopéia vale a pena. Gosto muito do jogo intertextual que Moraes faz com a Odisséia de Homero. As angústias do ser humano moderno são muito bem trabalhadas e, por incrível que pareça, os conflitos éticos dos dois protagonistas ficam emparelhados. Zeca é um ninguém, o dilema é esse. Odisseu tem de se pronunciar um ninguém para se salvar. Negar-se é uma constante na sociedade moderna, mas já tinha um grego fazendo isso 750 anos antes de Cristo...Como você, achei a verborragia chula meio enfadonha, mas o romance se sustenta muito bem com um belo andamento narrativo.

    Grande abraço e boa leitura!

    P.S. Viva o trema!!! ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü

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